Samba da meia noite

Saímos para fazer samba. Falando a verdade verdadeira, saímos para beber, espairecer. Não foi uma semana fácil em nossas vidas. Precisávamos espairecer.

Bom músico que é, não sai de casa sem algo que possa fazer um batuque, nem que seja uma caixa de fósforo, que certamente nunca esquece, já que sempre bebe cerveja com a companhia do seu cigarro de palha.

Eu que nem sabia que era músico, vagando  pela madrugada, fizemos um samba que nem samba sabemos se é.

O céu estrelou, o povo dormiu
Eu pelas ruas, você já deitada
Meu amigo Caetano certo está
Gente nasceu pra brilhar
Pra morrer é que não foi

E assim fomos, caminhando e batucando em cada mesa de bar que encontrávamos aberto, até o dia raiar. Os problemas começam sempre na mesa do bar e acabam de manhã na primeira golada de um café sem açúcar. Talvez dessa vez tivéssemos atinado para a realidade.

Tudo do avesso

Leia ouvindo:

Senta aqui, não repara a bagunça. Acabei de acordar e nem tive tempo de arrumar a cama. Só consegui escovar os dentes e fazer café, quando você mandou mensagem falando que estava a caminho. Foi bom você ter vindo de repente, estava precisando conversar. Está tudo dando tão errado, que não sei por onde começar a resolver tudo isso. Sabe, às vezes o fardo que a gente carrega fica muito pesado. Não sei se dou conta mais, preciso esvaziar um pouco isso. Que bom que você veio, de verdade. Quer um pouco de café?

Quando foi a última vez que nos vimos? Faz tempo, não faz? Mas toda vez que te vejo parece que conversei com você no dia anterior. Tanto tempo faz que não te vejo, que nem contei o que aconteceu nos últimos meses, mas nada mudou. As desilusões amorosas de sempre, pouco dinheiro pra tanta conta, pouco consolo pra tanta dor. Muito nada pra tanto tudo, assim vou levando.

Não me sinto tão bem como antes, queria expandir esse espaço três por três do meu quarto, tem horas que me sinto sufocado.

Falei com Pietra semana passada, lembra dela? Falou que vai morar um tempo na França e viver dos seus freelas. Rimos tanto lembrando do tempo da escola, que fiquei com dor na barriga. Mas logo que desliguei o Skype, voltou tudo de novo. Os problemas, as angústias, as dúvidas.

Pedro, tá difícil, cara. Falei com minha mãe que ia desistir da vida na cidade por um tempo, e tirar um período sabático na casa dela. Ela disse pra eu ficar por aqui, que reclamo demais. Não conto tudo que acontece pra ela, não quero ver ela sofrendo mais. É difícil guardar tudo isso pra mim, me corrói lentamente. Minha mãe falou que Deus nos dá os problemas que a gente consegue suportar, mas não sei o que mais que aguento, como tirar um pouco desse peso. Realmente não sei, mas obrigado por vir.

Enquanto você não existe, eu te invento

Eu queria que você estivesse aqui, em momentos como esse, que preciso desabafar. Eu queria que você estivesse aqui, em dias como esse, que íamos rir juntos pra eu não chorar. Eu queria, apenas, que você estivesse aqui. Não é tão difícil, é? Na ausência do dinheiro pra desabafar com um psicólogo, eu queria que você estivesse aqui. Ou eu aí. Só me fale onde você está que vou buscá-lo. Nos encontramos aí, ou aqui, tanto faz. Só preciso que você exista.

Caixa postal

Após o sinal deixe seu recado.

Carol, me atende, eu sei que você tá aí. Eu já fui duas vezes na portaria do seu prédio, e o Seu Silvio disse que você está em casa, mas falou que você pediu pra não deixar eu subir. Por que você tá fazendo isso? É isso que tô me perguntando e não encontro a resposta. Na verdade, a resposta dessa pergunta que fica martelando na minha cabeça só depende de você, mas, de fato, morrerei sem saber. Mas quer saber a verdade? Eu tô pouco me fodendo pra tudo isso. Eu já fiz de tudo pra tentar entender porquê tudo chegou nesse ponto, e se você não quer me ajudar encontrar a resposta, não vou procurar sozinho. É isso. Eu desisto. Vou partir pra outra e buscar novas respostas pra outras outras perguntas com quem vai me ajudar nessa busca. Talvez o amor seja isso, uma eterna busca por respostas. Mesmo que ela se encontre no silêncio dos pares. Um abraço, Carol, e depois desça na portaria e busque seus pertences que a mim não pertencem mais.

Imagem: http://isabella-veloso.tumblr.com/

Acabou

Não dá mais. Eu juro que tentei de todas as formas, mas não dá mais. Precisamos buscar alguma forma de acabar com isso, e acho que essa será a melhor. Juro que tentei. Mas você me força a isso, a romper com todos esses anos de trocas de afeto. O carinho que eu tinha por você se esvai assim como essa água que escorre pela janela. Mas não quero que seja assim.

Eu sempre vou lembrar de você, pode acreditar. Foram muitos anos juntos, não há como esquecer tudo. Como esquecer de quando você me levou pra tomar sorvete, e quando a gente ia embora a pé começou a chover? E aquela vez que fomos comprar aquele vestido branco com bolinhas vermelhas e você falou que parecia comigo quando eu estava de catapora? Impossível esquecer todos esses momentos. Mas tenho certeza que não dá mais.

Está decidido. Quero deixar de ser sua filha.

Imagem: Fabio Costello

Querido,

Querido, você já tomou banho? Você sabe que sujo não conseguirá uma namorada.

Onde já se viu querer dormir sem tomar banho?

Já tomou banho? Está passando da hora, e estou cansada de perguntar isso.

Vá, assim eu paro de perguntar, e você para de se irritar comigo.

Querido, e as notas na faculdade, estão boas?

Sabe que quero muito te ver formado?

Acho que vai ser o dia mais feliz da minha vida.

Querido, você está no estágio?

Não quero te atrapalhar, muito menos que seja demitido.

Te amo. Até logo.

Encosto em uma parede, e sinto como se fosse abraçado por ela.

Na indecisão, escolha na sorte

Ele estava na entrada do Conjunto Nacional na Avenida Paulista, e decidiu entrar e ir a Livraria Cultura. Precisava comprar um presente, e decidiu comprar um livro. Não sabia qual escolher dentre tantos gêneros: gastronômicos, literários, musicais, e até obras de arte reproduzidas no papel. A decisão não era fácil. Não por ter tantos livros, mas por ele não saber para quem daria esse presente. Se um homem, uma mulher, uma criança, um analfabeto funcional, uma mãe, ou uma puta. E, por não conhecer o bendito ou bendita que receberia esse presente, ficou sem saber qual compraria.

Não queria gastar muito tempo escolhendo um livro. Dizia ele que “a vida é muito curta. Não perco tempo nem escolhendo cueca, vou perder escolhendo livro?”. E resolveu andar de olhos fechados pela livraria e pegar o primeiro livro que trombasse. Pegou um livro sem pensar em qual era seu autor, ou sobre o que tratava, pegou. Ao ver, era um livro de um autor brasileiro, conhecido por poucos, admirado por muitos. Era o livro Barba Ensopada de Sangue de Daniel Galera. Pegou, pagou, levou.

Depois saiu andando pela Paulista pensando nesse presente, pra quem ele daria, quem seria o presenteado. Por ter comprado um presente sem nem saber pra quem daria, não sabia se voltava à livraria pra devolver livro ou se ficava com o livro para si. Resolveu continuar com o estimado, e continuou andando até que o lusco-fusco o desse aflição por ainda estar com aquele presente em mão. Viu que já era passada a hora de se desfazer dele. Precisava acabar com essa angustia, ou devolveria o livro, mesmo sabendo que seria difícil. Mentiria, se preciso fosse.

Depois de tanto perambular pela avenida, pegou um metrô da linha amarela em direção ao bairro de Pinheiros. Quando chegou na estação onde ia descer, caminhou até a rua Tucambira. Quando chegou no número 56 olhou pro lado e tinha uma pessoa sentada no chão. Quando se deu por conta já estava perto do Rio Pinheiros, e a mesma pessoa que estava sentada na rua Tucambira, estava lá, perto do rio, sentada, como se estivesse pensando na vida. Foi aí que ele pensou que deveria ter comprado outro livro, quem sabe o Escritos na Água de Alcione Araújo.

A história de Catarina

Catarina era menina sapeca. Vivia perambulando para lá e para cá o dia todo em sua terra natal: Recife. Sua mãe, coitada, vivia apavorada com medo daquela menina dócil e frágil se machucar. Tola, achar que uma criança esperta igual Catarina fosse dócil. Catarina era muito mal criada, isso sim. Respondia os professores, batia nos seus colegas de classe, era o terror da sua vizinhança. Certo dia ao ir à escola, peste como ela era, pegou uma pedra e tacou rumo a vidraça do seu vizinho – de fato, ela não gostava dele. Aquele velho rabugento e mal educado – dizia ela. Sua vidraça estilhaçou de um modo que quando o Seu José foi ver quem tinha feito essa mal criação, ela não estava mais lá. Na verdade, não sobrava nem um pedaço de sua vidraça inteira para lhe contar quem foi o autor dessa ato de má fé.
Mas se tem uma lugar que essa menina sapeca não gostava era sua escola. Na verdade não era a escola, o problema era que Catarina não gostava de estudar. Lugar que era motivo de inquietação para ela, ora pois, uma menina mal criada, sem educação e burra, não há de gostar de escola mesmo. Desculpe-me pelo uso desse adjetivo tão pesado. Catarina não era burra, até pelo fato de desconhecer a palavra. Para ela, burra era apenas o feminino de burro. Pobre Catarina! Sua felicidade se tornou efêmera ao ver a nota de sua prova de matemática: Zero! – exclamou Catarina espantada ao recebe-la. Espantada ficou a professora ao ver a reação de Catarina, uma menina que está na terceira série e não sabe quanto é dois vezes dois, ficar espantada com a nota de sua prova.
 Mal sabe vocês, mas Catarina de pequena só tem o tamanho. Nem tinha atingido a maioridade e era tão autoritária quanto seu pai. Por falar nisso, seu pai não era flor que se cheirasse. Catarina era muito mal criada, vivia falando palavrões. Por isso andava sempre com a boca inchada de tanto levar tapa na boca de seu pai mais autoritário ainda. Um palavrão, um tapa na boca. E assim seguia esse dilema infinito. Catarina cresceu, agora sim virou moça de verdade.
Já na plenitude de seus trinta anos, ela se tornou uma pessoa fria e vingativa. Mas ela era tão mal criada que havia de apanhar mesmo. Ao longo de sua vida -basicamente depois de seus trinta anos- ela cometeu vários homicídios. Acho que de tanto sofrer, quis se vingar de todas as pessoas que dela judiaram. Ao menos na concepção dela.
Catarina assassinou Seu Zé, sua professora de matemática e alguns de seus “colegas” da época do colégio. Catarina era uma assassina procurada pela polícia, a mais temida de todas. Sua mãe ficou chocada quando soube que sua filha estava sendo procurada pela polícia e exaltou-se, dizendo: “Minha filha Catarina. Onde ela há de estar neste momento, meu Deus? Olhai-a para sim Senhor, pois é só isso que te peço!”. Depois de alguns poucos anos essa procura da polícia foi bem sucedida. Catarina foi pressa em um presídio de segurança máxima de Pernambuco. Durante esse cinco anos que ela se encontra presa, até hoje ela bebe remédio para se curar do transtorno que tudo isso lhe causou. Mas um fato não pode ser esquecido. Ao ser presa, Catarina disparou: ” Ainda voltarei para me vingar de todos vocês – jogando as palavras ao vento, referindo-se às pessoas que ela ainda há de se vingar.